MEMÓRIA

 

 

 

 

 

 

             Essa história começa em São Domingos do Capim, um pequeno município do Pará, florescido às margens de um rio largo e de águas tranquilas, o rio Capim, que seria um exemplo de tranquilidade não fosse a pororoca que, anualmente, estronda seu barulho típico e vem agitá-lo em ondas que, recentemente, tem feito a alegria da rapaziada do Surf.

         Meu pai e minha mãe foram criados ali, seus olhos tomados daquela paisagem amazônica, ouvidos enfeitiçados de lendas do boto e do canto dos urutaís.

          Vital Luiz Porto, meu avô materno, era músico e regente da banda do lugar. Não sei até que ponto isso tem a ver com a genética, mas a verdade é que minha mãe sempre cantou afinadíssima, ensaiou virar-se em violonista e me passou o gosto pela música popular. Tanto que, do menino que eu fui, ficou uma cena forte grudada na memória : minha mãe lutando com a partitura de PECADO (a bela canção argentina de Carlos Bahr e Pontier Y Francini), violão soando no silêncio do quarto e eu me acomodando para dormir um sono mágico e melancólico como a querer reter em mim todas as sensações que pode desencadear aquela melodia mágica e triste.

 

           Lá pelos 13 anos eu fui morar em um condomínio de casas no bairro do Marco, em Belém, e definitivamente comecei a descobrir que o violão materno, que a esta altura andava abandonado, poderia ser causa de prazer, de divertimento. Ia aprendendo a andar os dedos sobre suas cordas com os outros amigos que já sabiam um pouco mais. A Jovem Guarda ainda era a tônica e tudo o que eu queria, naquele início, era poder tocar "Nossa Canção" , do Roberto Carlos, em ré maior, fazendo aquela pestana do fá sustenido e ouvindo as notas todas soarem redondinhas. Um dia isso aconteceu e o violão e todas as possibilidades que um instrumento musical pode ofertar, abocanhou-me a vida. Se bem que eu, o tempo e a vida o abocanhamos primeiro, considerando que aquele violão materno, de tantas idas e vindas pelo meu mundo, aposentara das rachaduras sem conserto.

Com 14 anos conheci Nilson Chaves. Era meu vizinho, morava perto de um campo de peladas onde a turma costumava se reunir, e fazia música. Fazia música porque o pai dele era dono de uma poderosa parafernália de amplificadores e caixas de som que animavam bailes, mais conhecida como "Promoção de Som Personal". Tinham discos de todo o tipo e eu gostava de ir almoçar o feijão de Dona Maria (a mãe do Nilson) e ouvir alguma novidade. Fazia música também porque tocava violão. Não demorou muito ele começou a fazer as próprias canções. De repente me descobri criando as minhas próprias. Fizemos teatro juntos, aprendemos a amar a arte dos atores com Cláudio Barradas e Geraldo Salles, fizemos música para teatro, cantamos juntos em peças, conhecemos Fafá Moura Palha (que depois viria a ser Fafá de Belém) e dividimos uma penca de noitadas de música sob a cor da lua de Belém.

 

 

 

 

 

 

 

          Entrei para a Universidade do Pará para fazer o curso de Direito quando o Nilson já partira para o Rio de Janeiro. Naquela época não se podia pensar em fazer carreira na música popular ficando em Belém, não havia uma infra-estrutura que permitisse isso: não havia estúdios, não se fazia gigs em bares, não havia os satélites permitindo as transmissões ao vivo pela televisão e a gente ficava muito isolado, não havia uma tradição nem público para ouvir o que se tinha para mostrar. Havia a febre dos Festivais de Música, desencadeada do sudeste para o resto do Brasil. Lembro do Festival que lançou Chico Buarque e A Banda, visto com alguns dias de atraso porque Belém precisava esperar que chegasse a fita de video-tape para exibição. De qualquer forma foi um festival de música que mudou meus rumos em 1974: o 1º (e creio que único) Festival de Música e Poesia Universitária do Pará onde "Por tua causa n.º 2", uma canção minha, foi classificada em 2º lugar com uma interpretação cheia de personalidade e carisma de uma estreante que um ano depois se tornaria conhecida nacionalmente como Fafá de Belém. Ali conheci Hermínio Bello de Carvalho que junto com Edna Savaget, Roberto Menescal e outras figuras destacadas do meio artístico brasileiro, fazia parte do corpo de jurados do evento.

                             Ao Hermínio, naquela época já um produtor musical, compositor e poeta respeitadíssimo,      devo todos os alinhavos feitos no embrião de artista que eu trazia para o Rio de Janeiro. Com ele, mais que tudo, aprendi a tirar poesia dos acontecimentos do mundo. Mas também aprendi a importância do aprendizado da técnica violonística que viria a me permitir executar melhor as harmonias que eu ousava fazer, aprendi as nervuras mais escondidas da alma de Dalva de Oliveira, Isaura Garcia, Orlando Silva, Zezé Gonzaga, Garoto, Noel, Aracy de Almeida, Valzinho, e tantos outros cantores, cantoras e compositores que ajudaram a construir a música popular brasileira, aprendi a importância e o prestígio da música amazônica de Waldemar Henrique e muitas outras coisas que mantenho bordadas dentro de mim.

         Com Hermínio fiz o LP Pastores da Noite em 1978, um apanhado das nossas parcerias feitas entre 1975 e o ano do lançamento que, pelo menos para mim, não sofreu com as ranhuras que o tempo costuma escavar. E a partir daí o compositor e o cantor que existiam em mim colocaram a cara no mundo. Foi o que fez que viessem à tona outros trabalhos meus como CHEGANÇAS (1980)  e VITAL (1990)

 

            Sucesso mesmo eu conheci em 1985, depois de ter lançado o INTERIOR com o Nilson Chaves, um marco em nossas carreiras. Enquanto elaborávamos o trabalho no Master Studio(Laranjeiras/RJ) tínhamos alguma noção de que estávamos fazendo algo muito especial. O repertório já estava testado nas muitas apresentações que fizemos pelo sudeste e norte do Brasil e cada arranjo era cuidadosamente pensado. Levamos um tempo acima da média gravando, muito por causa das programações de bateria do Carlos de Andrade, o Carlão – pessoa fundamental no resultado final do trabalho. Valeu a pena porque o disco estourou no norte, como se costumava dizer na época. Com Nilson também fiz o LP WALDEMAR, em 1992, revisitando as canções amazônicas de Waldemar Henrique, muito bem recebido pela crítica musical e que pôs suas pernas no mundo. Anos depois foi relançado em CD,

 

 

 

 

 

 

 

 

              De lá pra cá muita coisa aconteceu, até mesmo uma longa pausa em minha carreira, motivada por acontecimentos alheios à música. De qualquer forma, uma vez compositor pra sempre compositor e em 1997 o CD CHÃO DO CAMINHO, uma coletânea dos discos em vinil que fiz ao longo da carreira, cuidou de recolocar-me na estrada. Nele também duas músicas inéditas em minha voz: "Leopardo", que já havia sido gravada de forma irretocável por Marisa Gatta Mansa e "Chão do Caminho" que titulava o CD.

 

           Em maio de 2001, uma surpresa maravilhosa me aguardava em Belém. De um projeto idealizado por uma fã, Vanja Lima, nasceu uma das experiências mais emocionantes de toda a minha vida.Um show, batizado CANTO VITAL, reuniu 16 cantores/cantoras paraenses no Teatro Margarida Schivazappa, em Belém, repassando muitas das canções que fiz (sozinho ou com algum parceiro querido) em comemoração aos meus 25 anos de carreira. Foi gravado ao vivo e o CD lançado em 2002.

 

           Em Belém, em agosto de 2004, finalmente me vi naquele ambiente tão familiar e friorento dos estúdios de gravação. Ali, no APCE, gravamos o DAS COISAS SIMPLES DA VIDA, com músicos paraenses (Adelbert Carneiro, Edivaldo Cavalcante, Marcio Jardim, Edgar Matos, Esdras de Souza, Luiz Pardal e Delcley Machado) e produção de Marco André. Idan Góes administrando a execução de um projeto pensado e realizado com muito carinho. O CD foi masterizado no Magic Master, no Rio de Janeiro.

 

 

 

 

 

 

 

          Exatos dez anos depois, novas parcerias e canções se acumulando, consultei meu parceiro, produtor  e músico, Fernando Carvalho para saber se toparia encarar  a direção musical de uma produção que eu estava decidido a bancar , caso houvesse dificuldade em conseguir patrocínio. E, como eu esperava, ele topou, Em março de 2014 começamos a nos encontrar, discutir a roupagem das canções e a ensaiar os arranjos que ele ia fazendo a fim de reduzir custos. Em maio, começamos a gravar as bases no estúdio que David Ganc, esta pessoa extraordinária e músico que domina flautas e saxes (tocou na banda A Barca do Sol e, recentemente, solou em um  belo disco com o Quarteto Guerra Peixe), mantém na casa dele. Como eu imaginara, complicou-se a possibilidade de patrocinadores, e tudo se resumiu a um pequeno apoio, e bem-vindo, do meu parceiro Nilson Chaves. A vontade de fazer foi mais forte e detonei a poupança que vinha fazendo, além de contar com o carinho impagável de amigos músicos que a vida colocou em meu caminho.

          A verdade é que ao longo dos meses, mas antes do Natal, estava tudo pronto e mixado. Então, no início de 2015, conversando com Carlos Mills, da Mills Records, sobre onde fazer a masterização, tive a boa surpresa de saber que ele estava trabalhando com masterização e que, consequentemente, eu estava papeando com a pessoa certa. Dessa conversa ficou acertado de eu levar os arquivos digitais para que ele os masterizasse. Creio que ele se envolveu com o trabalho enquanto masterizava porque  acabou disponibilizando o selo Mills Records para que O QUE NÃO TEM FIM, o novo CD, finalmente, pudesse se dar a conhecer.

 

Rio de Janeiro, julho/2015